sábado, 23 de abril de 2011

Livro romanceia o maior roubo da história do Brasil

Roger Franchini, autor de 'Toupeira', conversa com o iG sobre o assalto ao Banco Central de Fortaleza, ocorrido em 2005.



Seis anos após ocorrer, o assalto ao Banco Central em Fortaleza - o maior roubo a banco da história do Brasil - suscita dúvidas e intriga parte dos envolvidos em sua investigação. O paradeiro de mais da metade dos R$ 170 milhões permanece desconhecido, e até hoje nenhum dos condenados assumiu a liderança do grupo, deixando em aberto a autoria do audacioso plano.

A ousadia dos ladrões, somada às diversas perguntas sem resposta, serviu de inspiração para que o roubo voltasse à tona em 2011. Primeiro com o livro "Toupeira: A História do Assalto ao Banco Central" (Editora Planeta), cujo lançamento acontece nesta sexta em São Paulo. Depois, em 22 de julho, com a estreia de "Assalto ao Banco Central" nos cinemas.

Em sua segunda incursão na literatura, o advogado e ex-investigador da polícia Roger Franchini, que também assina "Ponto Quarenta - a Polícia Civil de São Paulo para Leigos", de 2009, revela as nuances do curioso assalto com objetividade e desenvoltura, firmando-se como um dos grandes da literatura policial nacional. Em entrevista ao iG, o autor fala sobre o processo de romancear um dos roubos mais famosos do país.

iG: Por que contar essa história? Em qual momento você decidiu colocar no papel esses acontecimentos?
Roger Franchini: No meio do ano passado, quando fui convidado pela editora Planeta para escrever a coleção, sugeri ao editor vários crimes que entendia serem interessantes. O furto ao Banco Central era um deles. Dali a sentar para escrever foi uma questão de prazo.

iG: O que faz o assalto ao Banco Central diferente dos demais: o valor roubado, a audácia dos envolvidos?
Roger Franchini: Tudo isso que você citou, além do desaparecimento misterioso da quantia estratosférica e a engenhosidade do túnel cavado pelos bandidos. O que mais me sensibilizou foi a ganância da polícia ao extorqui-los; um retrato fiel de nosso momento sociopolítico.

iG: Quais foram as pesquisas feitas por você para juntar os fatos? Chegou a conversar com alguns dos participantes citados no livro?
Roger Franchini: Minha única fonte de pesquisa foi o processo. Optei em não entrevistar policiais, promotores, juízes e os criminosos para não me deixar influenciar, ou correr o risco de ouvir uma confissão extraoficial. Isso não seria justo com o leitor nem com os condenados. Consultei também alguns jornais da época, mas só para confrontar as informações que a imprensa trazia ao público com as provas que o poder judiciário possuía.
Foi preciso ultrapassar a imparcialidade do atores processuais para entender como funcionam os anseios e as expectativas de indivíduos que vivem indiferentes à ordem jurídica. O primeiro desafio foi colocar todos os fatos que constam nos autos em uma ordem cronológica, compreensível e agradável para o leitor. O segundo foi humanizar os personagens. No processo, seres humanos são números de documentos, distantes.

iG: A narrativa do livro é leve e por vezes é possível crer que se trata de uma história de ficção, inventada pelo autor. Ao escrevê-lo você sentiu essa liberdade em relação à história, colocando frases e diálogos curiosos na boca dos personagens?
Roger Franchini: Seria impossível romancear o crime sem criar alguns poucos eventos narrativos. Durante a pesquisa, notei que havia muitos fatos que não foram esclarecidos por inteiro. Mais de 70% do dinheiro ainda está desaparecido e nem todos os envolvidos foram identificados. Baseado na experiência que tenho como ex-policial, e utilizando a linguagem literária como ferramenta, preenchi esses silêncios fáticos com a imaginação. Mas nada que comprometa a história fiel, que está transitada em julgado.

iG: Existem muitas perguntas não respondidas sobre o assalto. Qual delas é a que mais o intriga?
Roger Franchini: Além da óbvia, sobre o destino do dinheiro, poderíamos começar com o básico em qualquer investigação: de quem partiu a ideia para realizar o furto? Quem tomou a iniciativa? Quanto a isso, nenhum dos condenados assumiu a liderança do grupo. Todos se disseram apenas peões de uma obra sem gestão. Provou-se apenas o envolvimento deles nas escavações e na dispersão dos valores. Além disso, minha dúvida preferida é sobre a misteriosa fonte de informações dentro do Banco Central, que indicou o local certo para escavação e tolerou o rompimento do assoalho do cofre e sua invasão sem que nenhum segurança percebesse. Quem não quer ter um amigo assim?

iG: Fiquei muito curioso em relação ao personagem Siri. Tem alguma suspeita do que ocorreu com ele?
Roger Franchini: Não é bom mexer com ele. Onde estiver, é prudente deixá-lo em paz.

iG: A literatura policial a respeito de crimes reais é um gênero forte no exterior, mas parece que foi descoberto recentemente no Brasil - o sucesso de títulos como "Elite da Tropa", por exemplo, denota esse movimento. Ainda assim, você acha que existe um buraco no mercado editorial para esse tipo de história?
Roger Franchini: Sem dúvida. Mas primeiro precisamos saber o que vem a ser a “literatura policial”. Classicamente, seu conceito envolve crime, investigação e descoberta do responsável do fato criminoso. Nesse sentido, o “Elite da Tropa”, mesmo sendo um livro delicioso e digno do sucesso que faz, não pode ser assim enquadrado, porque ele se refere mais a um estudo sobre o monopólio da violência do Estado (e seu abuso) como instrumento de imposição da ordem, do que trabalho investigativo.
Há um nicho para romances de investigação, sim. O Brasil é carente nesse segmento, porque temos como padrão a figura do “detetive particular”, que tanto sucesso faz lá fora. Ocorre que no Brasil o detetive particular, salvo raros casos, é uma figura fantasiosa. Costumo dizer que o que entendemos como o detetive particular brasileiro é o “ganso”, uma espécie de informante comum em toda delegacia, que recebe favores da polícia para fazer trabalhos sujos, como a infiltração.
Há um choque no público entre a realidade das delegacias e o mundo aparente da literatura detetivesca. O investigador, verdadeiro responsável pelo sucesso de uma investigação, é retratado como um funcionário público burocrático e preguiçoso, ou então como um super-herói ao melhor estilo "CSI". Talvez por desconhecimento - ou mesmo vergonha da realidade de nossa precária polícia civil -, noto que, nos romances, não dão chance para o investigador brasileiro trabalhar, por isso a investigação acaba privatizada e caindo nas mãos de personagens estranhos como advogados, médicos, jornalistas, coisa impossível de se pensar num mundo real.

iG: A literatura policial produzida no Brasil nos últimos anos parece muito próxima à realidade - seus argumentos são quase sempre ligados a acontecimentos reais. Você acha que os crimes cometidos no país são tão absurdos que tornam a criação de roteiros inéditos desnecessária?
Roger Franchini: Nossos crimes não são tão absurdos assim. Comparando com o que vemos nos jornais sobre atiradores nas escolas americanas ou os ataques terroristas na Europa, acho até que saímos perdendo. O diferencial do Brasil é o modo de condução da investigação. Os crimes que mais chocam a opinião pública brasileira são os pessoais, que agridem o patrimônio particular ou abalam instituições sagradas como a família. A literatura não usa a mesma linguagem do jornalismo. Enquanto o repórter quer os fatos imediatos, independentemente de um retrato fiel de quem os praticou, a literatura usa o exagero, engana o leitor para dizer verdades e torná-lo cúmplice da história.

iG: Outro fato curioso sobre a literatura policial brasileira é a dificuldade que os autores - muitas vezes policiais ou ex-policiais - encontram para defender a classe, sempre salientando a existência de oficiais honestos que lutam contra um sistema corrupto. Você acha que essa é uma marca desse gênero no Brasil: redimir os agentes honestos e expor suas dificuldades?
Roger Franchini: Talvez. Principalmente quando se compara com a literatura estrangeira. Quanto a mim, só entendo literatura como um meio de transformar o indivíduo e fazê-lo confrontar-se com os problemas que finge ignorar. Para o resto há os gênios. E na polícia, nosso maior problema está no choque entre pobres e ricos.
É impossível falar sobre investigação no Brasil sem tocar nas ineficazes políticas públicas que a cercam. É isso que atrapalha o sucesso de uma investigação, e não a qualidade do raciocínio do investigador. Ignorar isso é construir um mundo de sonhos para o leitor, coisa que não pretendo. A começar pelo delegado de polícia, uma figura política que só existe no Brasil, resquício de um colonialismo no qual o poder político regional era dividido entre os homens bons da corte. Os policiais ganham pouco, e por isso pertencem a uma classe social abaixo da classe média, a quem devem servir limpando as ruas. Isso os deixa indiferentes à dor da vítima, e por isso a ignora solenemente.
Ao mesmo tempo eles têm autorização para invadir a vida dessas pessoas e torná-las culpadas através do inquérito policial. A preocupação do policial é o bico, onde consegue o dinheiro honesto para pagar suas contas e forjar a imagem de policial competente que a sociedade tanto deseja na foto do jornal. Acredito que o escritor que se aventura a desenvolver uma história de investigação policial apta a tocar o público brasileiro deve ter a consciência da natureza do ser humano que está atrás do balcão do DP.

iG: Qual é a sua relação com a produção do filme "Assalto ao Banco Central"? E qual a sua expectativa em relação a ele?
Roger Franchini: Nenhuma. Foi uma feliz coincidência. O livro e o filme são obras independentes, visões autônomas de um mesmo fato. Assim que terminamos o livro soubemos da existência do filme. Fiquei muito contente com a notícia. Será interessante ver a história narrada de outra perspectiva. Estou ansioso para assisti-lo.

iG: O que você acha da escolha do ator Milhem Cortaz para interpretar o líder do grupo que praticou o assalto?
Roger Franchini: Ele tem uma força magnética em cena e uma capacidade de interpretação bem elástica. O “Zero Dois” [personagem de "Tropa de Elite"] que construiu é a cara de muitos amigos PM's.